Kamala Harris, a nova vice-presidente eleita dos Estados Unidos, tem um forte – e controverso – histórico na luta pelos direitos LGBT+.
Kamala Harris será a primeira mulher vice-presidente da América e também a primeira pessoa de ascendência africana e sul-asiática a ser eleita para a Casa Branca, um marco histórico.
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“Esta eleição envolve muito mais do que Joe Biden ou eu. É sobre a alma da América e nossa disposição de lutar por ela. Temos muito trabalho pela frente. Vamos começar”, disse Kamala Harris após a confirmação da eleição.
This election is about so much more than @JoeBiden or me. It’s about the soul of America and our willingness to fight for it. We have a lot of work ahead of us. Let’s get started.pic.twitter.com/Bb9JZpggLN
— Kamala Harris (@KamalaHarris) November 7, 2020
E realmente se trata de uma vitória incrível para Kamala Harris e para as mulheres. Os nomes de Joe Biden e Kamala também significam que, muito diferente do governo Trump, agora questões LGBTs encontram diálogo e aliados auto-declarados no posto máximo da Casa Branca.
Durante a campanha presidencial inclusive, Biden e Harris se comprometeram a aprovar a chamada Lei de Igualdade em seus 100 primeiros dias de governo. A medida proibirá empresas de demitir funcionários por LGBTfobia alegando “liberdade religiosa” como critério, algo que Donald Trump defendia e vinha lutando para que fosse permitido, praticamente institucionalizando a discriminação por orientação sexual e/ou identidade de gênero.

Recentemente durante a campanha, Kamala Harris também prometeu agir contra os alarmantes índices de violência contra mulheres trans negras, afirmando que deve haver “consequências mais graves e responsabilidade aos culpados”, sendo necessário fazer um “recorte” quanto à raça e gênero nestas questões pela desigualdade com que acontecem a cada parcela da população.
Falando em uma ONG LGBT em Outubro, a então candidata à vice-presidência lembrou de suas próprias experiências de trabalho com a comunidade trans e abordou a questão da interseccionalidade.
“Quando você combina questões de raça com ser transgênero, você fica duplamente exposto”, disse ela. E completou: “Não há mulher na casa dos 20 anos que não tenha medo de ser estuprada”, enfatizando que a mesma ameaça – ou pior – vale para mulheres trans.
Direitos LGBT
Anos atrás, antes da legalização do casamento homoafetivo a nível nacional nos Estados Unidos, como procuradora-geral da Califórnia, caiu no colo de Kamala Harris defender a Proposição 8, uma proposta de lei que visava proibir a legalização do casamento homoafetivo no Estado, que estava sendo discutida à época.
Ao receber a incumbência de defender a LGBTfobia do Estado quando se discutia legalizar ou não o casamento homoafetivo, Kamala, que pessoalmente era a favor do direito ao casamento gay, se negou a pegar o caso. Felizmente a Prop8 não vingou, o casamento gay acabou sendo permitido na Califórnia e a própria Kamala estava presente na celebração da primeira união homoafetiva legal do Estado.

Ainda como procuradora do Estado, Kamala impediu o chamado “pânico gay/trans” como alegação de defesa em crimes de LGBTfobia. Advogados que defendiam LGBTfóbicos costumavam usar o termo como desculpa para ‘amenizar crimes’. Por exemplo, se um homem matasse uma travesti ou mulher trans, poderia dizer em sua defesa para ‘amenizar o caso’ que agiu por impulso, por um ‘pânico gay/trans’ ao descobrir a sexualidade e/ou orientação sexual da vítima. Kamala agiu nos bastidores para eliminar a possibilidade deste tipo de alegação como defesa.
Já como Senadora, Kamala assinou autorizações para que pessoas trans tivessem o direito reconhecido de usar o banheiro de sua acordo com a sua identidade de gênero. Inclusive, a chamada ‘Lei da Igualdade’ que Joe Biden e ela prometem aprovar em 2021 contempla esta questão, que assim passará a valer para todo o país, enfim colocando um ponto final à uma questão básica e humana (ir ao banheiro) para pessoas trans.

Transfobia?
Entretanto, em seu histórico profissional e político, Kamala Harris nem sempre teve apenas acertos como parece na história recente. Justamente por isso, em alguns comentários em páginas e grupos de redes sociais mais progressistas, é possível ver internautas criticando e até atacando Kamala.
Uma verdadeira mancha em seu currículo data de 2015, quando ela, como procuradora-geral da Califórnia, não permitiu que a prisioneira trans, Michelle Norsworthy, recebesse uma cirurgia de redesignação sexual financiada pelo Estado. Na época, Kamala argumentou que “não havia evidências de que o tratamento era algo estritamente necessário.”
Felizmente a ação não teve sucesso e Michelle Norsworthy acabou sendo a primeira pessoa trans encarcerada do Estado (e a segunda nos EUA) a ter seu pedido de cirurgia autorizado.
Ao ser confrontada sobre este episódio lamentável no Fórum Presidencial LGBTQ em setembro de 2019, Kamala argumentou que, na época, tinha função advogar para o Departamento de Correções da Califórnia, que era seu cliente. E sendo assim, teria sido obrigada a seguir suas diretrizes: “Tive uma série de clientes como procuradora-geral que era obrigada a defender e representar e não podia ‘despedí-los’. Infelizmente, ocorreram sim situações em que meus clientes tomaram posições contrárias às minhas crenças”, ela respondeu, acrescentando que embora lamente o erro do passado, mesmo assim assume sua “total responsabilidade”.
Kamala respondeu ainda que, ao se dar conta do caso, trabalhou nos bastidores para tentar convencer o Departamento a alterar suas políticas contrárias à cirurgias de redesignação sexual em presidiárias e presidiários transgêneros, ainda que sem sucesso.
Ela ainda acrescentou ao repórter do Washington Blade que a confrontou sobre a questão de seu passado: “Eu me comprometo com você que sempre nesses sistemas haverá essas coisas (a LGBTfobia cultural e institucional). E vou me comprometer a lidar com isso para tentar mudar estas políticas.”

A ativista LGBT e atriz da série Pose, Angélica Ross, no mesmo evento ocorrido em Setembro de 2019, elogiou Kamala Harris por reconhecer a culpa e também se responsabilizar pelas questões dos direitos trans.
“Nesta conversa e em várias seguintes a esta, chamei Kamala para falar sobre seu histórico complicado em relação às pessoas trans, profissionais do sexo e criminosos não violentos”, lembrou Angelica Ross.
A descriminalização do trabalho sexual se tornou uma pauta importante entre organizações de Direitos LGBTI+, já que um número desproporcional de pessoas trans atuam nesta área devido a falta de oportunidades e marginalização às quais são submetidas.
Angelica Ross continuou: “Kamala reconheceu seu papel em colaborar com o Estado que destrói muitas vidas negras e se abriu comigo sobre o momento em que começou a entender estes erros no sistema e passou a pensar como poderia usar sua posição para mudá-lo, para nos proteger de crimes violentos, especialmente aqueles mais vulneráveis à violência doméstica e de parceiros íntimos.”

Assim como em questões de direitos trans, Kamala também tem um histórico controverso em relação a trabalho sexual e policiamento, dois temas que envolvem em peso a população trans, ainda tão atrelada à marginalidade.
Trabalho Sexual
Quando era procuradora-geral, Kamala Harris foi a favor do fechamento de uma plataforma online de busca de prostituição. Acontece que a ferramenta era útil para muitas profissionais do sexo pesquisarem perfis e avaliação de clientes em potencial, aumentando sua segurança.
Na mesma época ela foi uma das democratas a apoiar o SESTA / FOSTA, um par de projetos de lei que profissionais do sexo criticaram ostensivamente, argumentando que as impediriam de fazer seu trabalho com alguma segurança e independência.
Hoje, entretanto, Kamala Harris vê a situação com outros olhos e diz inclusive apoiar a descriminalização do trabalho sexual, o que antigamente era contra.
Sobre sua postura no passado (ela certa vez chegou a chamar a descriminalização da prostituição de “completamente ridícula”), Kamala justificou dizendo que era o resultado de sua vontade de, acima de tudo, criminalizar cafetões e clientes, o que julgava procedente na época. A justificativa realmente pouco convenceu, mas ao menos ela parece ter mudado de ideia.
Neste ano, respondendo um repórter que a questionou se ela achava que “o trabalho sexual deveria ser descriminalizado”, a então aspirante a presidente (antes de ser confirmada vice de Joe Biden, Kamala concorreu a vaga de candidata a presidência pelos Democratas) refletiu por alguns segundos e então respondeu a todos os presentes: “Hoje eu acho que sim. Quando você está falando sobre relação consentida entre adultos, eu acho que sim. Devemos realmente considerar que não podemos criminalizar um comportamento consensual, desde que ninguém esteja sendo prejudicado com isso, é claro”, disse mostrando uma visão bem diferente do que defendia no passado.
Já sobre sua carreira na polícia, Kamala Harris costumava se referir com muito orgulho a si mesma como “chefe da polícia”, um rótulo que hoje a persegue – e o qual evita – nas rodas mais progressistas.
Por conta disso, ela chegou a ser acusada de, por estar na polícia e sendo uma mulher negra em posição de comando, “consentir” e “fazer pouco” da histórica e cotidiana violência policial contra negros, tão comumente assassinados covardemente pelos agentes de segurança pública.

Ainda assim, sua posição nesta questão também parece ter evoluído. Em junho deste ano, Kamala falou sobre “Reimaginar como fazemos segurança pública na América”. Em seu discurso de posse nos últimos dias, isso também foi lembrado.
Kamala Harris também redigiu este ano a Lei de Justiça no Policiamento de George Floyd com Cory Booker, que visa enfim, em uma iniciativa inédita, combater o preconceito racial no meio policial.
Em um post crítico a Kamala no Twitter, a ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais – refletiu: “Uma promissora mulher negra como vice é uma conquista histórica e que deve ser celebrada. Mas Kamala tem histórico preocupante em relação às pessoas trans. Vamos seguir alertas, dialogando, acompanhando e tentando reconstruir o caminho de avanços que vínhamos trilhando”.
Muita atenção a Kamala Harris. Uma promissora mulher negra como Vice, mas que tem questões preocupantes em relação as pessoas trans:
Sua história como promotora traz uma série de erros em questões trans e o apoio recente a projetos de lei que reprimem o trabalho sexual.
— ANTRA Brasil (@AntraBrasil) November 7, 2020
E parece ser este mesmo o caminho. De já não termos no poder a extrema-direita conservadora – com quem não há sequer possibilidade de diálogo em relação a questões progressistas (vide Trump lutando por absurdos que já deviam ter sido superados há muito tempo, como permitir demissão por LGBTfobia ou ainda proibir que trans usem banheiros de acordo com sua identidade), mesmo com um histórico controverso – fruto de uma sociedade onde a LGBTfobia é cultural intrínseca no sistema – não deixa de ser uma conquista e evolução de onde estávamos, ter Kamala Harryis na vice-presidência da maior potência do mundo.
Que a gente não se esqueça então, tanto de valorizar a conquista e o progresso, como é claro, não deixe de estar de olho em cada passo, como lembrou a ANTRA.
Fontes usadas para pesquisa do artigo: Pink News / Them.Us. / Revista Forum / NBC News / Advocate / ANTRA